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Poços de Caldas: a cidade que brotou da água e não do altar

  • Foto do escritor: Fluxo BH
    Fluxo BH
  • há 20 horas
  • 3 min de leitura


Por Leônidas de Oliveira


No mapa da formação urbana de Minas Gerais, traçado ao longo dos séculos sob a lógica do ouro e da fé, quase todas as cidades nasceram entre o altar e a jazida. Foi assim em Ouro Preto, Mariana, Sabará, Serro. Os arraiais erguiam-se ao redor de igrejas, entre procissões e bandeiras, num gesto fundacional em que a cruz e a Coroa ditavam o traço da paisagem.

Mas há exceções que iluminam outras possibilidades de origem – e Poços de Caldas é uma das mais eloquentes. Ali, não foi a mina que atraiu os primeiros homens, nem tampouco uma missão religiosa. O que brotava da terra era outra riqueza: água quente, sulfurosa, envolta por névoa e mata. E foi ao redor dessa experiência sensível da natureza – e da crença popular em seus poderes curativos – que tudo começou.

A Fonte dos Macacos, descoberta no século XVIII, foi o núcleo primordial. Indígenas, tropeiros e viajantes se achegavam àquela nascente em busca de repouso, cura, alívio. E o que se formou ali não foi um povoado ao redor de um adro, mas um encontro humano impulsionado pela terra em ebulição. A cidade nasceu da água, e nesse gesto, já se insinuava uma espiritualidade: a fé que emana do mistério da natureza, da confiança no que cura, do silêncio que se faz prece.

Mais tarde, a ciência europeia validaria o que o saber popular já conhecia. No século XIX, as estâncias hidrominerais passaram a ser vistas como espaços de regeneração física e moral. Poços de Caldas, com sua geologia vulcânica e suas fontes, tornou-se referência. Nos anos 1930, com o Palace Hotel, o Palace Casino e o Parque José Affonso Junqueira, a cidade se consolidou como destino da elite brasileira, atraindo políticos, artistas e intelectuais.

Mas a vocação de Poços transcende o turismo de elite. Ao longo das décadas, firmou-se como símbolo de bem-estar, lazer e contemplação. Sua paisagem é convite ao corpo e à alma. O traçado urbano segue os contornos do vale, como observa o urbanista Osvaldo Junqueira – não em torno de eixos monumentais, mas de fluxos voltados à água, ao repouso, à convivência.

Comparada a outras estâncias mineiras, Poços conserva um diferencial que a torna única. Caxambu e São Lourenço, embora também marcadas pelas águas, cresceram sob forte presença da religiosidade tradicional. Araxá tem origem em missões e estratégias defensivas. Em Poços, as fontes não foram incorporadas a um plano anterior – elas foram o próprio plano. Sua lógica é orgânica, sensível, profundamente conectada ao espírito da paisagem.

Essa conexão não exclui a fé. Pelo contrário, a amplia. Nossa Senhora da Saúde, padroeira da cidade, não representa uma ruptura entre corpo e espírito, mas sua integração. Em Poços, fé e natureza se entrelaçam – como as águas que se infiltram entre as pedras, sem pressa, sem imposição. Como dizia o ex-prefeito Sebastião Navarro da Silva, “é uma espiritualidade que não funda a cidade, mas que se encaixa nela com a leveza das águas”.

Hoje, Poços de Caldas se reinventa como potência turística nacional. Seu patrimônio arquitetônico, seus parques termais, seus roteiros gastronômicos e culturais, suas feiras, festivais e paisagens vulcânicas compõem uma oferta única no Brasil. É um território de transição entre o sensível e o sagrado, entre o cuidado do corpo e o repouso da alma – uma cidade que continua a brotar, diariamente, da relação íntima entre o humano e a terra.

Leônidas de Oliveira

Secretário de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais

*Artigo originalmente publicado nesta segunda-feira (19/5) em O Tempo 

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